Em agosto, Bill Daly, subcomissário da NHL, voltou a falar sobre a provável quarta edição da Copa do Mundo de Hóquei, planejada para 2024. Um detalhe que não pode passar despercebido é o mês em que o evento pode acontecer: fevereiro. Pode não parecer e talvez nem seja essa essa a intenção (embora eu duvide que não), mas a data escolhida é, ou acaba sendo, um desafio ao Comitê Olímpico Internacional.

A Copa do Mundo de Hóquei foi realizada pela primeira vez entre agosto e setembro de 1996. Os Estados Unidos foram campeões da edição de estreia de um evento que surgia como sucessor da tradicional Canada Cup, disputada entre 1976 e 1991. A Canada Cup, por sua vez, foi a expansão das Summit Series de 1972 e 1974 — histórica série de jogos entre Canadá e União Soviética, valendo taça.

O que diferenciava a Summit Series, a Canada Cup e a Copa do Mundo dos outros torneios era a participação das estrelas da NHL. Jogadores profissionais eram vetados nos Jogos Olímpicos de Inverno e, mesmo permitidos no Mundial da IIHF desde 1977, suas presenças neste evento eram inconstantes, embora grandes nomes como Wayne Gretzky, Phil Esposito e Marcel Dionne tenham chegado a disputá-lo e até elogiaram a organização.

Essa preferência tinha a ver com a data escolhida para a Summit Series, a Canada Cup e a Copa do Mundo: sempre entre agosto e setembro. Era período entre a offseason e a pré-temporada da NHL. Assim, nenhum jogador ficaria de fora e ainda poderiam usar os campeonatos como aquecimento para a temporada que começaria no mês seguinte.

Dois anos depois da primeira Copa do Mundo, NHL e COI chegaram a um acordo e a participação dos jogadores da liga foi liberada para os Jogos Olímpicos de Inverno de Nagano, no Japão, em 1998. Mais que fins desportivos, essa permissão era uma oportunidade para a NHL ganhar mercado, como aconteceu com a NBA após o Dream Team de 1992. Assim, a liberação se repetiu em Salt Lake City 2002 (EUA), Turim 2006 (Itália), Vancouver 2010 (Canadá) e Sochi 2014 (Rússia).

Só que, a partir de 2006, algo passou a incomodar a NHL: calendário.

Dominik Hasek cumprimenta Wayne Gretzky nas Olimpíadas de 1998. Foto: Hans Deryk/AP

Olimpíadas: Queda-de-braço entre NHL e COI

As Olimpíadas acontecem em fevereiro. Isso faz com que a temporada da liga seja interrompida. Além do mais, já era claro que ter All-Star Game em ano de torneio olímpico era incompatível. Em 1998 e em 2002, o jogo das estrelas foi mantido, mesmo com Olimpíadas e isso sufocou o calendário da NHL e causou exaustão dos atletas.

Assim, para 2006, o All-Star Game foi cancelado, situação que se repetiu em 2010 e em 2014. De repente, ter jogadores nas Olimpíadas já não parecia mais um bom negócio.

Sem All-Star Game, a NHL perde uma boa fonte de receitas, além da oportunidade de confraternizar com fãs em um evento que movimenta, anualmente, a comunidade escolhida para recebê-lo.

As franquias também não curtiam o risco de um atleta voltar exausto ou machucado na reta final da temporada regular. Além do mais, o lucro da NHL com a Olimpíada é indireto, uma vez que não promove o torneio. Em 1998, tinha lógica, mas o mundo mudou muito desde então. Com a Internet cada vez mais rápida e os streamings assumindo controle da audiência, a liga não precisa mais estar presente em uma praça para conquistá-la.

O veto aos jogadores nas Olimpíadas voltou a ser ventilado, mas isso não aconteceria em 2010 ou 2014, afinal, uma era no Canadá e a outra na Rússia. Superados esses interesses econômicos e diplomáticos, os atletas enfim foram vetados para os Jogos de 2018, em PyeongChang, na Coreia do Sul.

Nesse meio-tempo, a liga, o sindicato e a IIHF promoveram a volta da Copa do Mundo para setembro de 2016. Desde que os astros passaram a ir às Olimpíadas, a Copa só havia acontecido uma vez, entre agosto e setembro de 2004, vencida pelo Canadá.

O evento de 2016 foi um sucesso, com os canadenses campeões novamente. A ideia de tornar sua periodicidade fixa voltou a ganhar força e era muito interessante para a liga: sua continuidade poderia acabar com a necessidade de liberar jogadores para as Olimpíadas. Além de acontecer uma época do ano mais conveniente para a NHL, a Copa do Mundo lhe gera muito mais dinheiro, por ser uma das organizadoras.

Copa do Mundo de Hóquei 2016
Copa do Mundo de 2016: Canadá campeão e nova ambição da NHL. Foto: HockeyCanada.ca

Copa do Mundo X Jogos Olímpicos: muito além do esporte

O posicionamento da NHL recebeu inúmeras críticas, afinal, a liga estava dispensando um evento tradicional, de amplo reconhecimento ao redor do mundo. Além do mais, as Olimpíadas ainda carregam um olhar romântico de espírito esportivo e integração entre povos. Os próprios atletas manifestam interesse em disputá-las.

As negociações aconteceram e houve um frágil acordo para as Olimpíadas de 2022, em Pequim. Mas veio a pandemia, que sufocou o calendário da liga e levou a um novo cancelamento, com promessas e conversas abertas sobre uma possível participação dos atletas nos Jogos de 2026, em Milão. Então, eis que a NHL se adianta e anuncia a Copa do Mundo para 2024, com a tal mudança de calendário: fevereiro.

Ora, se setembro foi o segredo do sucesso da Summit Series, Canada Cup e Copas do Mundo anteriores, por que mudar justamente para fevereiro? O famoso mês inconveniente para liberar os atletas para as próprias Olimpíadas, por interromper a temporada, cancelar All-Star Game e oferecer risco de desfalcar os times com lesões.

Não acredito que a escolha seja acidental. Tampouco contraditória, como pode parecer. A NHL manda um recado claro ao COI. A Copa do Mundo existe, pode ter periodicidade definida e pode, sim, substituir os Jogos Olímpicos, fazendo com que os atletas não sintam mais necessidade de disputá-los. Quem sabe, alcançar sua tradição e prestígio. É uma maneira muito clara de dizer que a questão não é somente calendário, mas quem manda comercialmente no esporte e pode faturar com ele. É um desafio aberto.

Saliente-se: não é uma disputa de bem contra mal, certo e errado, lucro versus espírito esportivo. NHL e COI são marcas riquíssimas que acumulam fortunas com seus eventos. Estão defendendo seus produtos.

O quadriênio 2023-2026 será um verdadeiro face-off diplomático entre as duas partes. A ver quem vencerá.