Você já se perguntou o que um time esportivo pode representar? Muitos times esportivos carregam nomes de sua cidade, vizinhança, estado ou região, alguns carregam alguma memória de ancestrais ou outras heranças culturais. E quando um time é uma franquia esportiva criada absolutamente do nada em uma cidade e país que vive uma situação complexa, o que esse time vai representar? Cada pessoa poderia responder isso de uma maneira diferente, mas nada melhor que um caso real para ilustrar essa questão. E nenhum caso dentro do hóquei no gelo é melhor do que o do Belfast Giants.

O time da capital da Irlanda do Norte nasceu praticamente do nada 22 anos atrás em uma estratégia ambiciosa para levar o hóquei até o país. Em sua relativamente curta história, tornou-se uma força dentro do hóquei britânico, ao mesmo tempo em que criou algumas ligações não existentes anteriormente dentro da cidade de Belfast. Os Giants foram uma aposta ousada da Elite Ice Hockey League (EIHL) para levar o hóquei no gelo até a Irlanda do Norte e viraram um caso de sucesso, apesar de todas as chances contrárias.

O que faz o caso do Belfast Giants tão importante e interessante é o fato de o time ter conseguido se ligar a uma cidade tão diversa e complicada dos pontos de vista político e cultural, ao mesmo tempo que não conhecia direito o esporte. Para começar a destrinchar o caso de Belfast, vamos começar pelo básico:

O hóquei na Grã-Bretanha e Irlanda

O hóquei no gelo, pelo menos o jogo como conhecemos atualmente, foi introduzido na Europa entre o final do século XIX e o início do século XX. A ligação colonial entre Canadá e a Grã-Bretanha levou o jogo à ilha, assim como na ilha vizinha da Irlanda. Enquanto os britânicos, especialmente ingleses e escoceses, se entusiasmaram com o jogo em algum grau, os irlandeses não se impressionaram. Apesar da Grã-Bretanha não ser exatamente uma potência no esporte, o país tem uma história tradicional no hóquei e importância por ter participado da fundação da Federação Internacional, a IIHF, e conquistado um ouro olímpico em 1936.

A trajetória do hóquei competitivo na Grã-Bretanha começa com competições diversas pela Inglaterra e Escócia até que nos anos 1930 são fundadas as primeiras ligas nacionais nesses países, que vão continuar até o ano de 1954. Uma constante na trajetória do hóquei britânico são os problemas financeiros que os times enfrentam levando ligas ao colapso, a primeira liga da Grã-Bretanha foi a British National League e durou apenas seis anos, ela reuniu times da Inglaterra e Escócia até que um colapso completo do hóquei profissional escocês aconteceu em 1960. Os escoceses se reergueram e voltaram a competir já em 1962, entre 1966 e 1982 times da Escócia e norte da Inglaterra competiram na chamada Northern League, os times do sul da Inglaterra criaram a Southern League, onde pela primeira vez times do País de Gales participaram de uma liga do mais alto nível na ilha britânica. O próximo passo era a fusão das ligas, o que aconteceu em 1980.

A Northern e a Southern League se uniram a outras ligas menores para fundar a British Hockey League em 1980, a liga operou até 1996, quando disputas internas e problemas financeiros levaram a fundação de outra liga e dissolução da British Hockey League. Em 1996 começou a operar a Ice Hockey Super League, que durou apenas sete temporadas e mais uma vez a instabilidade financeira golpeou a liga. O papel importante da Ice Hockey Super League foi tomar uma atitude arriscada, a liga ousou explorar um grande mercado que não apresentava aparente interesse no hóquei, foi assim que a Irlanda do Norte ambiciosamente acabou anexada ao mapa do hóquei no gelo britânico.

A Irlanda do Norte não tinha time de hóquei no gelo profissional, havia apenas um rinque das dimensões oficiais de jogo para o hóquei no gelo no país. Em toda a ilha da Irlanda, que engloba tanto Irlanda do Norte quanto a República da Irlanda, não existia o mínimo interesse e estrutura para um time profissional de hóquei no gelo. Ainda assim, a Ice Hockey Super League decidiu apostar e em 2000 nasceu o Belfast Giants, um time em uma cidade dividida, num país amedrontado e numa ilha politicamente complicada, praticando um esporte praticamente desconhecido naquele lugar.

Uma aposta gigante

A cidade de Belfast estava querendo revitalizar uma área chamada Titanic Quarter, um antigo estaleiro onde foi construído o famoso navio Titanic, na década de 1990 como uma abertura para o novo milênio que se aproximava. Em 1992 foi lançado o projeto do Odyssey Complex, que traria esporte e cultura para a área, dentro do projeto estava prevista uma arena multiuso para mais de sete mil espectadores. A construção da arena foi iniciada em 1998, mas antes disso, em 1997 o empresário Bob Zeller quis levar o hóquei para a Irlanda do Norte. Zeller aproveitou a construção da Odyssey Arena para entregar um projeto a Ice Hockey Super League e a ideia foi aprovada.

Belfast é uma cidade muito dividida, como toda a Irlanda do Norte, a questão religiosa entre católicos e protestantes, além das questões políticas envolvendo o Reino Unido e separação do restante da Irlanda são assuntos que até hoje afetam a vida das pessoas. Belfast também não apresentava um time que unisse a cidade, fosse de futebol ou rugby, os esportes mais populares no país, os times sempre representaram regiões da cidade, que por sua vez correspondem às suas próprias divisões sociais e políticas.

Enquanto o projeto de Zeller para a fundação do time era encaminhado, algo muito importante aconteceu na Irlanda do Norte. Em 10 de abril aconteceu o Acordo de Belfast, mais conhecido como Acordo da Sexta-Feira Santa, que colocava fim aos conflitos entre grupos paramilitares republicanos e unionistas. De um lado estava o Irish Republican Army (IRA), que era formado por católicos contra a permanência da Irlanda do Norte no Reino Unido, do outro lado a Ulster Defence Association (UDA), um grupo de protestantes que era a favor da permanência no Reino Unido. Foram 20 anos de conflitos entre as partes, e o governo da Irlanda do Norte, o importante acordo definia uma paz dentro do país e estabilidade para as pessoas. Esse importante passo político deu mais força para o projeto de Zeller.

O problema inicial não era apenas como trazer o hóquei no gelo para uma cidade que nem conhecia o esporte direito, mas também como unir essa cidade tão dividida em torno de um único time? Zeller precisava começar dando uma identidade mais geral para o time, um nome que não pendesse para nenhum dos lados e para isso ele se apoiou nas lendas locais. Existem lendas muito antigas em toda a Irlanda sobre gigantes, na região de Belfast existe a lenda de Finn McCool, que era um rei entre os gigantes, ele foi escolhido como mascote do time e a partir daí surgiu o nome Belfast Giants.

A Giant’s Causeway, uma formação natural no litoral da Irlanda do Norte, que por muito tempo foi atribuída como as ruínas de uma ponte construída pelos gigantes para chegar a Grã-Bretanha (Foto: Joe Gough/Fotolia)

Com um nome que fazia referência à mitologia local, algo que toda a cidade e o país conheciam, o próximo desafio era vender ingressos para um esporte desconhecido. Para isso, o projeto do time foi chamar todos os públicos para os jogos, além de garantir a paz dentro da arena. De fato, são proibidas camisetas de clubes de futebol e rugby dentro da arena do Belfast Giants, para evitar conflitos dentro do local. Se um adulto é visto com uma camiseta dessas ele é pedido que se cubra com casaco ou mude de roupa, para isso teria que comprar uma camiseta na loja dos Giants, as crianças acabam ganhando uma camiseta do time nesses casos.

Quando finalmente o ano 2000 chegou, o Belfast Giants começou a se mover, contratou treinador, montou um time, porém enfrentou outros problemas. O Odyssey Complex estava atrasado em suas obras, o time teve que treinar sem uma boa estrutura e começar a temporada com 15 jogos fora de casa. Sua primeira partida foi no dia 16 de setembro contra o Nottingham Panthers, o time sofreu uma derrota por 5 a 1, mas na noite seguinte conseguiu vencer o Bracknell Bees pelo placar de 6 a 5 no shootout.

Finalmente a estreia em casa chegou, era dia 2 de dezembro e pela primeira vez um jogo de hóquei profissional seria disputado na cidade de Belfast. A parte mais complicada do sonho de levar um time de hóquei no gelo para a Irlanda do Norte era fazer as pessoas se interessarem pelo esporte, o fato de ser algo diferente foi muito bem vendido, assim como a ideia de trazer todo e qualquer tipo de público para a Odyssey Arena, atualmente chamada de SSE Arena Belfast. Os Giants debutaram em casa contra o Ayr Scottish Eagles com os ingressos esgotados, o time da casa perdeu aquele jogo por 2 a 1, porém o jogador Paxton Schulte virou o primeiro herói local. Schulte fez o único gol do time e minutos depois acabou derrotando um adversário numa briga sem dar chances ao rival.

O Belfast Giants conseguiu manter o sucesso de público na sua primeira temporada, o público abraçou o time que respondeu terminando sua primeira temporada em sexto lugar muito por conta da campanha dentro de casa. A aposta arriscada começava a se mostrar ter sido favorável a Bob Zeller.

Na terra dos Giants todos são iguais”

Haviam padrões muito estabelecidos de tradições esportivas na cidade de Belfast antes dos Giants chegarem. O Ulster Rugby, por exemplo, representa a Irlanda do Norte nos grandes campeonatos do esporte, no entanto é muito ligado à comunidade protestante e unionista. Os times de futebol da cidade são organizados em suas comunidades de bairros e distritos, cada um deles acaba representando uma divisão dentro do total. Para ser o time de Belfast, os Giants tinham que englobar todas as diferenças de uma cidade diversa e ainda desconfiada.

O Belfast Giants começou pelo nome e regras de vestimenta, logo englobou também algumas regras de conduta. Para fazer todos serem bem-vindos aos jogos, independente de sua idade, religião, gênero, sexualidade e posicionamento político, a organização precisava abraçar todas as pessoas. Uma regra de comportamento nos jogos dos Giants na SSE Arena é a proibição de linguagem que pode ser ofensiva a qualquer grupo, afinal você não acolhe a todos de verdade se permite preconceitos de qualquer natureza.

O objetivo sempre foi criar um espaço familiar, seguro e acolhedor para as crianças. O time nasceu ainda com as tensões e desconfiança de uma cidade que vivia com a violência, os jogos do Belfast viraram um porto seguro para as famílias. Não basta conquistar alguns fãs, os Giants precisavam, e ainda precisam, conquistar também as crianças. Quando você quer construir algo com sucesso precisa de uma base forte e duradoura, e essa base no esporte passa pela conquista de novas gerações para que se continue trazendo torcedores aos jogos. Além disso, cativar as crianças também pode trazer interesse para a prática do esporte e talvez virar um talento do Belfast Giants futuramente.

A ligação cultural do Belfast Giants com a cidade de Belfast está expressa em murais feitos por artistas locais, uma expressão artística popular em Belfast.
Mural do coletivo Extramural Activity destacando o trabalho social do Belfast Giants na comunidade (Foto: Extramural Activity)

A Belfast do ano 2000 e a Belfast da atualidade são relatadas como cidades muito diferentes. O acordo de Belfast mudou a vida das pessoas para melhor, como esperado, hoje existe um sentimento muito maior de unidade na cidade. O Belfast Giants se tornou um dos símbolos dessa união, o time foi adotado pela cidade desde o começo e é tido como um dos pontos em comum para as diferentes pessoas se integrarem. Quem já havia chegado à idade adulta quando o time nasceu começou a ter contato maior com pessoas de locais diferentes da cidade, com vidas diferentes, o time uniu católicos e protestantes, unionistas e republicanos, a comunidade LGBTQIA+ e conservadores religiosos, e outras tantas pessoas opostas. Todos ganharam um objetivo em comum: torcer pelo time que representa a cidade e o país na Grã-Bretanha.

E quem nasceu e/ou cresceu após a estreia dos Giants encontrou uma realidade muito mais amigável e pacífica, uma Belfast muito mais segura. Todos tinham algo em comum no time de hóquei local, e a paixão das crianças pelo time virou amor e um público muito jovem foi cativado pelos Giants. Na Irlanda é comum que católicos assistam e pratiquem o futebol gaélico e hurling (um parente de origem celta do hóquei), os protestantes se ligam mais ao rugby, mas com o hóquei no gelo tendo sido apresentado sem essas ligações tradicionais os mais jovens acharam um ponto em comum também.

A ligação com a cidade trouxe também outros papéis sociais para o Belfast Giants, como o seu projeto chamado Odyssey Ice Academy, que apesar do nome vai muito além da prática esportiva. O projeto alcança os jovens da comunidade local com atividades esportivas no gelo e fora dele, com recreação para crianças, campanhas sobre diversidade, saúde mental e física nas escolas, treinamentos de habilidades profissionais para os jovens em vulnerabilidade social, entre outras atividades. O time também se juntou com a Irish FA, a associação de futebol da Irlanda do Norte, para um projeto chamado Game Changer, que visa prevenir os jovens de se envolverem no extremismo violento, além de outros suportes para a vida.

O Belfast Giants derrubou barreiras, fez com que pessoas de grupos diferentes se encontrassem e convivessem. As pessoas que antes desconfiavam umas das outras passaram a se conhecer, conversar, entender suas diferenças. Essa convivência é necessária para que haja uma identificação entre os diferentes lados do mesmo povo, uma integração tinha que começar por algum ponto e a chegada de um time de hóquei no gelo na cidade fez com que existisse um ponto de partida. O que começou como uma ideia de marketing para chamar pessoas para um jogo completamente novo na cidade, hoje virou a marca de um time e mais, influenciou mudanças positivas na cidade de Belfast.

Muito mais do que se dizer um lugar neutro, e não confundam neutralidade com uma falta de posicionamentos e ações, o Belfast Giants se tornou com suas ações essa comunidade em que todas as pessoas podem ir independente de quem elas são sem medo de serem oprimidas ou perseguidas.

O que os Giants nos ensinam

Quando Bob Zeller quis criar um time de hóquei no gelo profissional na cidade de Belfast o chamaram de louco. Zeller foi um visionário, talvez com uma dose de loucura também, arriscou e teve suas recompensas. O Belfast Giants hoje tem seis títulos do Reino Unido, incluindo da última temporada (2021-22), é um sucesso de público e um modelo em outros aspectos também. O time sobreviveu a crise do hóquei britânico na virada do século e ao colapso da Superleague, foi um dos fundadores da Elite Ice Hockey League junto ao Nottingham Panthers e Sheffield Steelers. A liga começou em 2003 e tem sobrevivido apesar das dificuldades e espera continuar a crescer.

Um ensinamento claro que os Giants deixam é que para o novo chegar, o antigo precisa ser superado. E isso não acontece sem que haja alguma ousadia e atos diferentes do que a tradição dita para que o antigo seja superado. Tradições são relevantes, podem ser até importantíssimas e boas, ao mesmo tempo em que podem ser horríveis e retrógradas, especialmente as que são retrógradas precisam ser superadas e darem lugar a algo melhor, é a única saída para se melhorar como sociedade. E foi nisso que o Belfast Giants achou seu lugar, numa cidade e num país que precisava deixar sua tradição de separação para trás para conhecer a paz, ele deu o primeiro passo.

Ao mesmo tempo, o que Belfast fez foi provar que não só os mercados mais tradicionais e mais óbvios podem obter sucesso, os mercados novos e arriscados têm uma chance real. Por vezes você precisa arriscar se quer realmente ampliar e levar o esporte para mais pessoas, se expandir, e ficar apostando nos mesmos lugares. É preciso ressaltar que o caso do Belfast Giants pode ser um exemplo, especialmente em como criar uma identidade para um time e captar o público, porém não significa que seja o correto arriscar tanto. Os Giants demonstram que para o improvável dar certo é preciso ter um plano, não apenas olhar para um lugar em potencial e fazer o de sempre.

O esporte pode não ser o mais popular do Reino Unido, os britânicos não são também uma potência no hóquei apesar da medalha de ouro olímpica. No entanto, é inegável que existe uma tradição do esporte no país, ao menos na Inglaterra e Escócia, no País de Gales o esporte se desenvolveu depois, enquanto na Irlanda do Norte ainda está nos primeiros passos. O Belfast Giants abriu as portas e quer ir além, Belfast, a Irlanda do Norte, assim como toda a ilha da Irlanda ainda têm muito para crescer e desenvolver no hóquei.

 

Autor

  • Escrevo sobre o esporte desde 2010, mas sou fanático há muito mais tempo. Entusiasta principalmente da NHL, grandes ligas da Europa e hóquei de seleções. Torcedor de New York Rangers, Krefeld Pinguine, Tappara, EV Zug e apreciador de outros tantos times e seleções. Sou conhecido como Fanático por Hóquei no Twitter.