Em 2004, eu estudava à noite e, enquanto me preparava para ir para a faculdade, liguei o televisor. Com áudio original em inglês, a ESPN mostrava Toronto Maple Leafs contra Ottawa Senators. O jogo estava parado e tocava “Paranoid”, do Black Sabbath, na arena. Não lembro se mudei de canal, se fiquei assistindo e perdi a aula ou se acompanhei até a hora de sair. Mas ali, um pequeno marco da história era escrito. Toronto vencia sua última série de playoff há quase duas décadas, tabu que caiu apenas agora, em 2023. E a NHL mudou muito de lá para cá.

Treinados por Pat Quinn, o Leafs terminou a temporada 2003-04 com 103 pontos e ficou em quarto lugar geral na Conferência Leste. Tinha mando de gelo contra o Senators, que ficou em quinto com 102 pontos. Toronto contava com veteranos como Gary Roberts e Tie Domi e, na reta final da temporada, trouxe Ron Francis e Brian Leetch.

As grandes estrelas naquela série, que foi até o sétimo jogo, foram o goleiro Ed Belfour, com três shutouts, e o atacante Joe Nieuwendyk, com cinco gols. Roberts, Leetch, o capitão Mats Sundin e Bryan McCabe também tiveram destaque.

Foi um duelo de altos e baixos, das duas partes, e Toronto e Ottawa alternavam boas atuações. Apenas o jogo 6 foi para a prorrogação. O Senators venceu por 2 a 1 no começo do segundo tempo extra. As demais partidas foram ganhas com relativa segurança por algum dos dois times. Na sétima, em 20 de abril, o Maple Leafs fechou a conta com 4 a 1, dois de Nieuwendyk.

Após a partida, o repórter da CBC Scott Oake exaltou os papéis de Nieuwendyk e Belfour na classificação, opinião ratificada por Domi. “Fizemos tudo por eles. São campeões da Stanley Cup que nos mostram o caminho”, afirmou o colega.

Oake também elogiou o Senators, um “time muito talentoso” vencido pelo Leafs. E de fato, era: aquele Ottawa tinha Marian Hossa, Daniel Alfredsson, Zdeno Chara e o então jovem Jason Spezza. “Sabíamos que seria uma série longa, nos concentramos e sabíamos que no final, valeria a pena”, disse Nieuwendyk.

Nem ele, Domi ou Oake faziam ideia do tormento que esperava Toronto. O Leafs caiu na rodada seguinte para o Philadelphia Flyers, em seis jogos, com os veteranos já exaustos. Começava ali uma seca que afetaria clube e cidade por um longo período.

Quase 20 anos de solidão

A agonia só terminou no sábado (29), quando John Tavares marcou, na prorrogação, o gol da vitória de Toronto por 2 a 1, encerrando a série contra o Tampa Bay Lightning em seis jogos. A cidade parecia ter exorcizado um fantasma. Foram 19 anos sem passar para a segunda fase.

Se o jejum do Maple Leafs fosse personificado, teria idade legal para dirigir, votar, trabalhar em tempo integral e ingerir bebidas alcoólicas, tanto no Brasil quanto no Canadá. É possível que boa parte do público que acompanha a liga no Brasil hoje nem tivesse nascido quando esse evento aconteceu.

Da última vez que Toronto passou de fase…

… a Liga era outra, em vários aspectos. Eram apenas 30 franquias. Atlanta ainda tinha um time, o Thrashers, que só mudou para Winnipeg em 2011. E alguns não tinham seus nomes atuais. Anaheim Ducks ainda se chamava Mighty Ducks of Anaheim e o Arizona Coyotes ainda era Phoenix Coyotes.

Seis times ainda não tinham vencido suas primeiras Stanley Cups: Carolina Hurricanes, Anaheim Ducks, Los Angeles Kings, Washington Capitals, St. Louis Blues e Tampa Bay Lightning, ainda na campanha que o levaria ao seu primeiro título naquele mesmo ano.

Jogadores

Mario Lemieux seguia em atividade, embora, naquele ano, tenha disputado apenas 10 jogos de temporada regular. Jaromir Jagr estava em sua primeira passagem pela NHL e o recém-aposentado Wayne Gretzky ainda nem tinha tentado se aventurar como head coach.

Sidney Crosby e Alexander Ovechkin não haviam estreado. O russo havia sido draftado naquele ano, mas seguia jogando na Rússia, enquanto Sid era calouro no Rimouski Oceanic, seu time juvenil.

E os heróis da classificação de 2023 estavam ainda mais distantes: John Tavares jogava no sub15 e, aos sete anos de idade, Auston Matthews vivia no Arizona, provavelmente dando suas primeiras patinadas em algum programa de hóquei mirim da região.

Regras e regulamentos

A Liga ainda não tinha salary cap, que entrou em debate na off-season e causou o locaute da temporada 2004-05.

Havia empates. Na temporada regular, os jogos terminados empatados após a prorrogação acabavam ali mesmo, com 1 pontinho para cada. Os shootouts só seriam adotados dois anos depois.

As dimensões dos rinques, posicionamento das linhas e até mesmo as medidas de equipamento dos goleiros também foram ligeiramente alterados. O trapézio atrás das traves, que delimita a zona de atuação dos goleiros, também não existia.

Tendências

Só um jogo ao ar livre tinha acontecido, o Heritage Classic entre Oilers e Canadiens, em 2003. Antes disso, a NHL chegou a ter três amistosos a céu aberto, mas aquele era o primeiro em caráter oficial.

Eventos anuais como Winter Classic e Stadium Series não pareciam realidade tão próxima.

… e no Brasil

Para finalizar, as coisas também eram bem mais complicadas para quem queria ser fã de hóquei por aqui. A única fonte de informação era a ESPN, que passava NHL à conta gotas.

O motivo pelo qual peguei o jogo ao vivo com áudio em inglês naquele fim de tarde é que o narrador oficial, o saudoso André José Adler, só era escalado para hóquei se não tivesse outra prioridade na fila. Futebol americano, basquete e muitas vezes, competições inusitadas, como turfe, homem mais forte do mundo e até adestramento de cães poderiam tirar nosso narrador preferido da transmissão.

Jogo ao vivo também era um luxo. Se a NHL entrasse em conflito de horário com NBA, NFL ou MLB, o canal passava apenas um VT na íntegra de madrugada. Alguns jogos chegavam a ser cortados durante a exibição para dar lugar a algum evento que garantisse maior audiência.

Fora isso, não tinha como assistir. A NHL.tv ainda não existia e, mesmo que existisse, nossa Internet, ainda rudimentar, não suportaria o streaming. Star+, então, algo impensável. E a DirecTV não dispunha do pacote Center Ice para o Brasil, uma vez que os direitos das ligas americanas para a América Latina eram exclusivos da ESPN. E mesmo que não fossem, dificilmente a DirecTV disponibilizaria tal pacote para cá. Teria no máximo algumas centenas de assinantes e olhe lá.

É irônico que, depois daquele 20 de abril de 2004, a vida de quase todo torcedor brasileiro tenha melhorado. O avanço da Internet e a chegada do streaming nos permitiu acompanhar conquistas que nunca havíamos imaginado. Para os fãs do Maple Leafs, no entanto, a redenção só aconteceu agora, quase 20 anos depois. Talvez só Tavares, no discurso pós-jogo 6, possa resumir: “Foi ficando cada vez mais difícil, mas a sensação é muito boa, não é? E foi só o primeiro passo”.

 

 

Texto por: Thiago Leal.