O Brasil no futebol masculino, Estados Unidos no basquete, Nova Zelândia no rugby, Canadá no hóquei sobre o gelo. Em esportes coletivos esses países são sinônimos da mais alta qualidade competitiva de seus respectivos esportes, quando seleções desses países entram em campo, quadra ou rinque, elas entram com um favoritismo e todo o peso dele. São verdadeiras instituições que têm muita história e vitória, por isso são comparáveis umas às outras.

O hóquei no gelo é um esporte que possui uma dinâmica de competições internacionais não muito bem definida na categoria masculina. O que é maior, um mundial ou Olimpíada? Para a IIHF são tecnicamente iguais, assim como a Stanley Cup, mas para os esportes em geral as Olimpíadas são o maior momento do esporte. A medalha olímpica, especialmente o ouro, é o maior prêmio que muitos atletas podem receber, em poucos esportes como futebol, rugby e hóquei masculino há algo de igual ou maior valor a uma medalha de ouro olímpica.

O sonho de jogadores e federações era que os atletas da NHL pudessem participar dos jogos olímpicos, isso finalmente aconteceu em 1998. As Olimpíadas seriam em Nagano, no Japão, e pela primeira vez o hóquei no gelo teria os melhores atletas, e as melhores também, mas isso é outro assunto. Com isso, todo mundo sabia que as seleções favoritas para as medalhas eram Canadá, Estados Unidos e Rússia, provavelmente o pódio olímpico em 98 seria alguma combinação entre as três seleções.

Dois anos antes, a NHL organizou pela primeira vez sua Copa do Mundo, um torneio de altíssimo nível que teve os Estados Unidos como vencedores. As seleções seriam um pouco diferentes daquele torneio dois anos antes, mas alguns jogadores haviam melhorado mais ainda, todos estavam animados para ver o que aconteceria no Japão.

A força do Canadá

Uma seleção canadense contava com dois dos três melhores goleiros, podemos começar com essa frase sobre o Canadá. Em 1998 o trio convocado para os jogos olímpicos foi Patrick Roy, Martin Brodeur e Curtis Joseph, quase impossível ser melhor do que isso, especialmente se tratando de Roy e Brodeur.

Defensores? Rob Blake, Ray Bourque, Adam Foote, Scott Stevens, Al MacInnis, Chris Pronger… Praticamente todos os melhores do mundo. Era uma força incrível que quando você ainda olha para nomes como Scott Niedermayer de fora ainda fica pensando se não era possível mudar alguns dos jogadores para melhorar mais ainda esse elenco. Essa era uma verdadeira Era de Ouro dos Defensores, a defesa dessa seleção canadense era de longe a melhor dos jogos olímpicos.

E no ataque tinham Eric Lindros, Brendan Shanahan, Joe Sakic… E um tal Wayne Gretzky, que estava no final de carreira, mas o mundo sabia que ele era o melhor de todos os tempos. E eu nem citei jogadores como Joe Nieuwendyk, Trevor Linden e Theoren Fleury… Estados Unidos e Rússia tinham também muito peso no ataque nesses jogos, mas o Canadá ainda conseguia ser melhor nisso.

O veterano Wayne Gretzky sonhava com o ouro (Foto: Tampa Bay Times)

Era como o Dream Team, a seleção masculina de basquete dos Estados Unidos que encantou o mundo nos jogos olímpicos de Barcelona em 1992. Se não tinha exatamente todos os melhores jogadores em cada posição, o time tinha alguns dos melhores e uma força tão grande no time que chegava a ser bizarro. Porém alguns detalhes fazem essa comparação ser injusta: A seleção canadense masculina de hóquei que jogou em Nagano não era tão amplamente a melhor de todas, além disso o time não tinha exatamente o melhor de cada posição também. Mas, se em algum momento uma equipe tecnicamente tão parecida com o Dream Team foi reunida em Olimpíadas, foi exatamente essa seleção masculina do Canadá que jogou em Nagano.

Tinha outro fator importante de comparação com o Dream Team: em Barcelona foi a primeira vez que os atletas da NBA competiram nas Olimpíadas, em Nagano seria a primeira vez dos atletas da NHL. A seleção do Canadá tinha uma responsabilidade com as expectativas gerais, mas com tantos jogadores vencedores eles estariam prontos para corresponder à altura, certo?

Os canadenses chegaram como estrelas a Nagano, vindo de Trem diretamente de Tóquio. A estação se encheu, Gretzky e Lindros foram cercados por muitos fãs e pela imprensa que estava pronta para abordar as grandes estrelas daquela seleção. Um pouco diferente do que eles estavam acostumados, mas era uma ótima recepção calorosa dentro do esperado, afinal eram algumas das maiores estrelas do esporte reunidas em um lugar apenas.

Com tantos egos juntos, o controle disso precisava ser forte e eficiente, e ele foi. O time agiu em conjunto até o fim, nos melhores e piores momentos. Estavam todos ali pelo mesmo objetivo: a medalha de ouro olímpica, isso acabou ajudando muito na química da equipe.

O favoritismo existia, mas só se vence jogando. E foi aí que o problema apareceu em algum momento.

Provando sua força

A seleção canadense masculina estreou nos jogos olímpicos de Nagano contra Belarus, uma vitória fácil por 5-0 mostrou que eles estavam prontos para o que viria pela frente. O segundo jogo da primeira fase foi o mais difícil dos três, um duelo equilibrado contra uma ótima seleção sueca. Os suecos saíram na frente, entretanto os canadenses emplacaram três gols no final do segundo período e não apenas viraram o jogo, como abriram uma vantagem. A Suécia fez o segundo gol na etapa final, mas o placar terminou em 3 a 2 a favor do Canadá.

A terceira rodada seria contra os Estados Unidos, que haviam perdido para a Suécia e derrotado Belarus. Os estadunidenses precisavam de um bom jogo para mostrar que o favoritismo apontado antes do torneio era justificado, os jogadores canadenses sabendo da força que os EUA tinham acabaram entrando completamente ligados no jogo e focados em terminar a primeira fase com uma campanha perfeita.

A seleção canadense passou pela primeira fase com facilidade
A primeira fase foi fácil para a seleção masculina do Canadá (Foto: Hans Deryk / THE CANADIAN PRESS / AP)

O Canadá começou jogando com vontade e em boa forma, fazendo quatro gols em três períodos. Os Estados Unidos tiraram o shutout do Roy com um gol de Brett Hull, mas tudo parou aí. Com a vitória, o Canadá passou em primeiro no seu grupo e enfrentaria o quarto colocado do outro grupo nas quartas de final, a campanha perfeita na primeira fase se pagou garantindo um confronto mais fácil na primeira eliminatória do torneio.

Nas quartas o adversário foi o Cazaquistão, a seleção canadense começou com dois gols rápidos. Os cazaques fizeram um gol pouco mais de um minuto após o segundo gol do Canadá, porém foi tudo o que fizeram naquele jogo. O Canadá marcaria mais dois gols no segundo período e cozinharia o resto do jogo, sem se preocupar muito.

A vitória por 4 a 1 contra o Cazaquistão levava o Canadá para a fase semifinal, o adversário dessa fase era a Tchéquia. Os tchecos haviam passado pelos Estados Unidos, quem além de perder o jogo perdeu também a cabeça e os jogadores decidiram descontar a raiva nos quartos onde estavam hospedados, mas essa é outra história. Além de canadenses e tchecos, as semifinais do hóquei masculino contaram também com Rússia e Finlândia no outro confronto.

A lógica apontava a seleção canadense contra a russa pela medalha de ouro, mas primeiro eles precisavam vencer seus jogos. O Canadá iria enfrentar uma seleção que estava jogando bem e tinha nomes que poderiam decidir a partida, especialmente Jaromír Jágr e Domink Hašek, que era justamente o melhor goleiro e melhor jogador de todo o mundo naquele momento. Hašek havia vencido o Hart Trophy, prêmio de melhor jogador da temporada da NHL, em 1996-97 e, spoiler, iria vencer novamente naquela temporada.

A queda

O jogo entre Canadá e Tchéquia, suas seleções masculinas, em Nagano 1998 é um dos mais lendários de toda a história do hóquei no gelo em Olimpíadas. Um jogo que ficou no 0 a 0 por quase cinquenta minutos, onde os goleiros brilharam muito. Ao contrário do que muitos pensam ou lembram, a Tchéquia estava jogando melhor que a seleção canadense desde o primeiro período e Patrick Roy trabalhando sob pressão, do outro lado Dominik Hašek também estava fazendo grandes defesas, por mais que o Canadá estivesse criando menos chances, ainda assim era o mesmo Canadá cheio de estrelas capazes de definir a qualquer momento.

Um jogo nervoso foi se desenvolvendo, montando o cenário para o ápice perfeito. Quase cinquenta minutos haviam se passado quando Jiří Šlégr finalmente colocou o disco no fundo da rede, a seleção tcheca estava na frente. Os canadenses olharam para o relógio e perceberam que tinham pouco tempo, a partida mudou de uma vez, explodindo as emoções nos dez minutos finais. A pressão canadense era sempre respondida com contra-ataques perigosos da seleção Tcheca, Roy manteve o Canadá vivo, enquanto do outro lado Hašek parecia imbatível. Quase entrando no minuto final, entretanto, Trevor Linden conseguiu marcar aproveitando o posicionamento do defensor como distração.

O jogo terminou empatado em 1 a 1, na prorrogação a seleção canadense continuou a pressionar para conseguir vencer o jogo. Mas era 1998 e Dominik Hašek estava do outro lado, o jogo virou um show do goleiro tcheco contra o poderoso ataque canadense, Hašek levou a partida até o limite de tempo, tudo o que os canadenses mais temiam. Quatro anos antes, o Canadá perdeu a medalha de ouro para a Suécia no shootout, ali em Nagano eles precisariam vencer a disputa de penalidades do hóquei para chegar à final.

A questão era que os jogadores da seleção canadense não estavam prontos para o shootout, eles não treinavam isso e a maioria jamais havia passado por um momento como este anteriormente. O Canadá encontrou seu nêmesis naquele shootout, não era a Tchéquia, não era Dominik Hašek, era sua própria soberba.

“Nós somos o Canadá, nós não jogamos pelo bronze”, “Eu não acho que o hóquei deveria ser definido numa competição de habilidades individuais”, “Nós não treinamos para isso”. Essas são algumas das frases proferidas por Theoren Fleury no documentário Five Rings Films: The Nagano Tapes, que é sobre a conquista do ouro pela Tchéquia e ilustra bem toda a soberba canadense, mesmo vinte anos depois. Dizem que o orgulho precede a queda, e não ter a humildade de ao menos treinar o shootout para saber o que fazer caso fosse necessário foi a peça final na queda canadense.

Apenas Robert Reichel conseguiu converter sua chance, foram nove cobradores, Hašek defendeu as cinco chances que a seleção canadense teve. Era o fim do sonho dourado para o Canadá em Nagano, o impensável aconteceu.

O impensável aconteceu na semifinal e a seleção canadense masculina caiu no shutout (Foto: Profimedia.cz)

Wayne Gretzky, que em 1998 já era reconhecido pelo mundo como o maior jogador de hóquei no gelo de todos os tempos, ele havia conquistado tudo e planejava encerrar a carreira em breve. A chance dele vencer uma medalha de ouro olímpica foi em Nagano, e Gretzky fez tudo o que cabia a ele. Quando Hašek defendeu a tentativa de Brendan Shanahan, os jogadores do Canadá se levantaram e saíram, mas Gretzky ficou. A câmera foca no Great One, e ele está com os olhos marejados, descrente que seu sonho havia chegado ao fim. Gretzky chorou essa derrota e até hoje fala que aquela medalha teria sido a coroação perfeita de sua carreira.

Ironicamente, o Canadá iria jogar pela medalha de bronze. A seleção adversária da última partida em Nagano foi a Finlândia, que não esperava tanto chegar numa semifinal olímpica, mas lá estava. A seleção canadense dominou esse jogo, tentaram de todas as maneiras sair com uma vitória, mas não acertaram o gol tantas vezes quanto deveriam. A Finlândia venceu por 3 a 2 e levou a medalha de bronze.

E o Canadá, que tinha expectativas de ser o Dream Team do hóquei no gelo, saiu de Nagano com as mãos abanando. A grande seleção reunida para vencer o ouro, que contava com tanto talento, não foi capaz de vencer a si mesmo e isso foi pago com uma queda inesperada.

Epílogo

Quatro anos depois, o Canadá voltou com fome total e completa para vencer o ouro no hóquei masculino e a seleção reunida em 2002 espantou o fantasma de 1998. Fleury, Sakic, Yzerman, Nieuwendyk, Lindros, Pronger, Shanahan, Foote, Brodeur, Joseph e MacInnis voltariam para dar a volta por cima em Salt Lake City. A seleção canadense de 1998 tinha os melhores nomes, mas a de 2002 foi capaz de lidar com o favoritismo.

Em Nagano 98 a seleção masculina do Canadá aprendeu que você pode se achar pronto para a grande conquista e acabar falhando mesmo assim. Essa queda do Canadá ensina algo importante sobre esportes em geral: você pode ter a melhor equipe, estar bem preparado, mas ninguém é invencível e todo mundo tem um ponto fraco.

A vitória sobre o Canadá ajudou a aumentar a história da Tchéquia que venceu a medalha de ouro no hóquei masculino. A vitória da Finlândia fez com que a seleção masculina saísse com uma medalha até inesperada de Nagano, os europeus acabaram dominando o pódio da categoria no Japão. No final das contas um dos melhores aspectos dos esportes é que o inesperado acontece, do ponto de vista de algo maior essa queda canadense ajudou muito mais o hóquei no gelo do que sua vitória teria feito. O destino é sempre implacável, mas às vezes de uma maneira inesperada.

Autor

  • Escrevo sobre o esporte desde 2010, mas sou fanático há muito mais tempo. Entusiasta principalmente da NHL, grandes ligas da Europa e hóquei de seleções. Torcedor de New York Rangers, Krefeld Pinguine, Tappara, EV Zug e apreciador de outros tantos times e seleções. Sou conhecido como Fanático por Hóquei no Twitter.