“A toda ação há sempre uma reação oposta e de igual intensidade: as ações mútuas de dois corpos um sobre o outro são sempre iguais e dirigidas em sentidos opostos.” – Terceira lei de Newton.

A história da National Hockey League é feita de diferentes eras onde os estilos de jogos, formas de se forjar um jogador e mesmo modelos de negócios entram em choque, dessa maneira os paradigmas acabam mudando dentro do jogo. O jogo muda, os jogadores passam a ter novos pontos fortes, posições e funções evoluem deixando outras para trás, assim implicando também em novas mudanças no futuro. Apesar de o contexto não ser o físico, da ciência, a terceira lei de Newton ajuda a compreender esse efeito.

Os anos 1980 foram os anos dos grandes atacantes, de Wayne Gretzky superando a barreira dos 200 pontos em uma única temporada quatro vezes, de Mario Lemieux quase conseguindo essa marca em 1988-89, também de defensores especialistas em apoiar o ataque formados aos moldes de Bobby Orr. Enquanto tudo isso acontecia, os goleiros mudaram sua forma de jogar e as pontuações começaram a cair, porém a última e definitiva resposta seria uma evolução profunda em como os defensores eram formados.

Essa é a relação entre a terceira lei de Newton e esse capítulo da história do hóquei no gelo, especialmente da NHL: os grandes atacantes precisavam ser controlados. E foi especialmente durante a década de 1990 que muitos nomes surgiram na posição de defensor e esses jogadores iriam desequilibrar o jogo. Toda ação causa uma reação.

Nem tudo aconteceu apenas na América do Norte, precisamos ter em mente que, fora da NHL, a seleção da União Soviética dominava o mundo com um jogo muito ofensivo também. Dentro do próprio sistema de formação dos atletas na URSS aparecem jogadores que fazem o papel do que hoje se chama de two-way defenseman, o jogador que defende como prioridade e também participa ativamente da transição de jogo para a zona ofensiva. E isso não ocorreu apenas por trás da cortina de ferro, a Suécia também teria um papel fundamental nessa mudança de jogo.

As mudanças não seriam todas de uma vez, foi durante os primeiros anos da década de 1990 que o jogo foi tomando outra forma com os goleiros passando todos a jogar no estilo butterfly, consequentemente conseguindo cobrir de modo mais eficiente o gol. Então, na temporada de 1993-94 Brian Leetch, defensor do New York Rangers, terminaria sendo eleito o melhor jogador da pós-temporada se destacando muito mais do que qualquer outro pelas capacidades ofensivas e defensivas. Porém, outro time se destacaria pelo seu esquadrão defensivo naquela mesma temporada.

Defensores começam a dominar o jogo

O New Jersey Devils em 1993-94 acabou chegando a final de conferência e fez uma série histórica contra o New York Rangers. Os Devils tinham um certo goleiro novato chamado Martin Brodeur, alguns bons atacantes, mas seus principais jogadores naquela campanha eram os defensores. O time era liderado por Scott Stevens, Ken Daneyko e Vyacheslav “Slava” Fetisov, mas também tinha os bons Tommy Abelin e Jaroslav Modrý, além de um jovem talento chamado Scott Niedermayer. Stevens e Niedermayer naquela temporada começaram um dos pares defensivos mais bem sucedidos na história da NHL, a infame Double Scott, um trocadilho com os nomes deles e o double scotch, que é um tipo de uísque feito ao modo escocês.

Scott Niedermayer foi um dos melhores defensores da história e um dos grandes nomes do New Jersey Devils
Scott Niedermayer foi um dos grandes jogadores dessa época e peça fundamental na dinastia dos Devils (Foto: Brian Bahr/Getty Images/NHLI)

Fetisov seria trocado com o Detroit Red Wings na temporada seguinte, os Devils venceriam a Stanley Cup contra os Red Wings apoiados num desempenho defensivo impecável e com Martin Brodeur fechando o ferrolho de um sistema extremamente eficiente. Esse time dos Devils provou a força de ótimos defensores e definitivamente abriu uma nova era no jogo, New Jersey voltaria a conquistar a copa nas temporadas 1999-00 e 2002-03 com Niedermayer, Stevens, Daneyko e Abelin no seu elenco e dominando muitos adversários

EAST RUTHERFORD, NJ – JUNE 9: Scott Niedermayer #27 of the New Jersey Devils holds the Stanley Cup over his head on a victory lap after beating the Mighty Ducks of Anaheim in game seven of the 2003 Stanley Cup Finals at Continental Airlines Arena on June 9, 2003 in East Rutherford, New Jersey. The Devils defeated the Ducks 3-0 to win the Stanley Cup. (Photo by Brian Bahr/Getty Images/NHLI)

É verdade que logo na temporada seguinte, a de 1995-96, Mario Lemieux venceria o Art Ross Trophy, dado ao jogador que alcança a maior pontuação na temporada regular, ao somar 161 pontos. Além de Lemieux, outros dez jogadores quebrariam a marca da centena de pontos durante a temporada regular. No entanto, nos playoffs, o jogo defensivo apareceria outra vez e seria muito decisivo.

De 1996-97 até 2003-04, a temporada que precedeu o lockout e cancelamento de 2004-05, os números dos atacantes foram sendo minados e em três oportunidades o maior pontuador da temporada regular não alcançaria os 100 pontos. Nesse período de oito temporadas, em quatro vezes atacantes conseguiriam ser o MVP da temporada regular ajudando a mostrar que a vida estava muito mais difícil para jogadores das posições ofensivas.

Grandes defesas ganhando campeonatos

Logo após o título de New Jersey veio o sucesso do Colorado Avalanche, aquele time campeão em 1995-96 tinha grandes defensores, jogadores muito eficientes e que conseguiam proteger o goleiro com muita segurança. Sandis Ozolinš, Alezei Gusarov e Uwe Krupp formavam a base defensiva, Gusarov e Krupp já eram veteranos e Ozolinš tinha apenas 23 anos naquela temporada. Daquela defesa de 1996, apenas Foote voltaria a erguer a Stanley Cup no título em 2001. Durante a temporada 2000-01 Colorado trocaria pelo veterano Ray Borque e Rob Blake, considerado o defensor mais temido naquele tempo, sua defesa ganharia mais força e seria importantíssima para ser a terceira menos vazada na temporada regular e ganhar jogos grandes na pós-temporada.

Ray Bourque e Rob Blake foram duas aquisições defensivas que pesaram no título de Colorado em 2001 (Foto: Brian Bahr/Getty Images)

Essa foi uma era de três times dominando a NHL, um deles foi o Detroit Red Wings que venceria a Stanley Cup em 1997-98. Sua composição defensiva tinha Nicklas Lidström e Vyacheslav Fetisov sendo os grandes nomes, mas eles foram apoiados Larry Murphy, Anders Eriksson, Jamie Macoun e Dmitri Mironov nos dois títulos em sequência. Nas temporadas 1996-97 e 1997-98 Detroit ficaria com a Stanley Cup, nessas temporadas enfrentaria grandes ataques como o do Colorado Avalanche, Dallas Stars, St. Louis Blues e mesmo Philadelphia Flyers na final em 97. Nessas séries de playoffs a eficiência defensiva foi testada muitas vezes e não tem outro resultado para sua avaliação senão a aprovação com muitos louvores.

E o que dizer do Detroit Red Wings de 2001-02? Lidström continuava lá, o time ainda havia adquirido Chris Chelios, um dos grandes desse período, os tchecos Jiří Šlégr e Jiří Fischer, o canadense Steve Duschesne, além do já citado Uwe Krupp. O estelar Red Wings de 2001-02 não poderia ser diferente em sua defesa e é impossível dissociar o sucesso do time ao sucesso defensivo daquele elenco, claro que os holofotes ficaram mais focados nos atacantes e no goleiro, mas parte da facilidade que esse time teve na pós-temporada veio da capacidade de parar ataques de equipes já citadas anteriormente.

Nicklas Lidström foi um dos melhores e maiores defensores de todos os tempos
Nicklas Lidström foi um dos maiores defensores da história (Foto: Gregory Shamus/Getty Images)

O já citado Dallas Stars chegaria ao título em 1998-99, o time era liderado pelo seu capitão Derian Hatcher, que era um defensor de muito talento. A grande estrela na defesa era Sergei Zubov, que já havia conquistado a copa em 1994, o time tinha também Shawn Chambers e Kelly Fairchild, dois jogadores muito eficientes em sua posição. O último par tinha uma grande rotação de veteranos e jovens, mas sem muita perda de qualidade, o sistema foi capaz de parar Blues e Avalanche, time anteriormente citados por seus ataques espetaculares, no caminho para a copa.

Em 2004 Tampa Bay Lightning venceria a copa com apenas um defensor entre seus grandes destaques: Dan Boyle. Esse seria o fim da era de ouro dos defensores, quando os atacantes começariam a responder mais e mais, no entanto não seria a última vez que ouviríamos falar alguns dos nomes já citados nesse texto.

O período entre as temporadas de 1993-94, ou 1994-95, e 2003-04 seria dominado por times com sistemas defensivos muito sólidos, defesas fechadas, dificuldades muito maiores dos atacantes quanto jamais tiveram até então em anotar gols. A fórmula para vencer uma Stanley Cup nesse período era ter um bom goleiro, um sistema defensivo que fosse decisivo e atacantes bons o suficiente para conseguirem fazer o fundamento que define os jogos: o gol. Vários dos nomes já citados aqui estão no hall da fama, fizeram parte da controversa lista dos 100 melhores jogadores do centenário da NHL, eles mudaram o jogo de uma forma que nenhum defensor havia feito antes. E não eram apenas os defensores campeões que mandavam na liga durante essa era.

Além dos campeões

Pensando nesse período em específico, o grande defensor que não esteve em um time campeão foi Chris Pronger. Pronger estreou na NHL exatamente em 1993-94, quando toda essa história começou, se destacou no St. Louis Blues fazendo grandes campanhas em temporada regular e playoffs, porém sempre sendo impedido de gravar seu nome no prêmio final. Em 1999-00 ele chegou a vencer o Hart Trophy, dado ao melhor jogador da temporada regular, sua Stanley Cup não veio nesse período, porém conquistou uma medalha de ouro olímpica em 2002. Pronger beberia da Stanley Cup em 2007, pelo Anaheim Ducks, um time que também contava com Scott Niedermayer em seu elenco. Pronger é um dos maiores e principais nomes dessa época na posição de defensor.

E o que falar de jogadores como Al MacInnis, Eric Desjardins e Paul Coffey? Grandes estrelas que haviam começado em outra era, eles estavam lá no final dos anos 1990 e início do novo século, Desjardins e Coffey ajudaram o Philadelphia Flyers a chegar a final da Stanley Cup em 1997, MacInnins era uma das figuras fortes do St. Louis Blues junto ao Pronger.

Eric Desjardins foi fundamental para os Flyers em 1997 (Foto: Len Redkoles/Getty Images)

Tínhamos também Ulf Samuelsson à solta nessa era, que já havia vencido duas Stanley Cups pelo Pittsburgh Penguins, o defensor sueco era conhecido por seu jogo físico pesado e um slap-shot de dar medo. Outros jogadores muito eficientes como Jason Woolley, que jogou pelo Buffalo Sabres no final dos anos 1990, também fizeram sua parte nessa época, os nomes citados aqui são apenas uma parte da galeria dos talentos que jogam na posição de defensor no período em destaque.

A segunda metade dos anos 1990 e da década de 2000 foi marcada por confrontos de grandes defesas anulando os ataques mais fortes do mundo, mesmo nas Olimpíadas o jogo defensivo foi decisivo. Na National Hockey League era fundamental poder segurar os ataques adversários e proteger seus goleiros com a maior eficiência possível, e não importava quem estivesse no gol. Os atacantes sempre foram treinados para aproveitar qualquer chance mínima que tivessem, você piscava um segundo e estava atrás no jogo contra um time tão ou melhor quanto o seu e que iria dar a vida para impedir que marcasse um gol.

Não podemos esquecer que os grandes atacantes também estavam lá naquela época e sedentos por marcar gols. Porém, os defensores dos anos 90 foram preparados para impedir seu sucesso o máximo possível, diferente de seus antecessores que muitas vezes eram apenas jogadores altos e fortes, eles tinham técnicas mais sofisticadas defensivas e de patinação também, apenas assim você conseguiria parar um Jaromír Jágr da vida, e olhe lá. Mas, essa também foi uma era de muitas concussões porque as regras do jogo permitiam uma forma de abuso dos hits na cabeça do adversário, Scott Stevens e Chris Pronger eram conhecidos por não aliviar de forma alguma na hora de acertar um oponente.

Scott Stevens era conhecido por não aliviar em momento algum (Foto: MSN)

A era de ouro dos defensores em um momento chegou ao fim, após o lockout de 2004-05 jogadores como Alexander Ovechkin e Sidney Crosby vieram para a NHL e eles estavam prontos para passarem por cima desses defensores. É verdade que alguns deles sobreviveriam ao tempo e se mostrariam muito mais prontos e melhores do que já se achava. Nicklas Lidström hoje é considerado um dos melhores defensores de todos os tempos, talvez o melhor, e ele envelheceu demonstrando um jogo cada vez mais refinado na segunda metade dos anos 2000, chegando a mais uma Stanley Cup em 2008. Outro jogador que envelheceu como um bom vinho foi Scott Niedermayer, que após o lockout se juntou ao seu irmão Rob no Anaheim Ducks. Em 2007 não apenas conquistou a Stanley Cup, como foi o Conn Smythe Trophy, MVP da pós-temporada, jogando de uma maneira que parecia impossível de ser superada. Fora da NHL, Lidström ganhou a medalha de ouro com a Suécia em 2006, Niedermayer iria fechar o terceiro par da defesa canadense também medalha de ouro em 2010, na sua temporada de aposentadoria.

Atualmente Connor McDavid e Leon Draisaitl dominam a NHL, Ovechkin continua marcando gols atrás de gols, mas temos bons jogadores nas defesas da liga que talvez nos permitam vislumbrar um pouco do futuro. Desde o lockout de 2004-05 não temos tanto talento defensivo dominando a liga, assim como não existe garantia que algum dia teremos volume de talento defensivo tão grande que cause outra profunda mudança no jogo, entretanto lembrem-se da terceira lei de Newton.

 

Autor

  • Escrevo sobre o esporte desde 2010, mas sou fanático há muito mais tempo. Entusiasta principalmente da NHL, grandes ligas da Europa e hóquei de seleções. Torcedor de New York Rangers, Krefeld Pinguine, Tappara, EV Zug e apreciador de outros tantos times e seleções. Sou conhecido como Fanático por Hóquei no Twitter.