A função do enforcer, aquele jogador que entra no gelo para dar hit e brigar, provavelmente surgiu no hóquei logo nos primeiros dias do jogo. O esporte nasceu em outro contexto social do que temos hoje no Canadá, o país era muito mais pobre e violento, segundo alguns historiadores as brigas eram tanto uma maneira de aliviar as tensões do jogo e evitar violência posterior, quanto uma maneira de intimidar adversários se aproveitando da falta de regras. A tradição da briga permaneceu, mesmo que racionalmente não faça sentido algum o grau de tolerância ter persistido. Até hoje ela existe, mas especialmente entre os anos 1970 e 1990 essa tradição saiu de controle na NHL e isso se liga a expansão do número de times, estratégias de jogo, guerra fria e uma irracional defesa de uma tradição questionável.

Esse não é somente um artigo sobre a história do jogo, é também um olhar sobre a violência dele como uma escolha daqueles que praticam e dirigem o esporte.

A Chegada dos Enforcers

Tecnicamente essa função de intimidar adversários e brigar quando necessário sempre existiu no jogo, entretanto os enforcers como conhecemos só começam a aparecer nos holofotes da maior liga do mundo no final dos anos 1960. Vários jogadores especializados nesses aspectos mais físicos do jogo, digamos assim, já circulavam por outras ligas da América do Norte,  os enforcers porém não chegavam tanto a NHL até que em 1967 a liga promove a primeira expansão moderna passando de seis para doze times.

Com o número de times dobrando, mais espaço apareceu para que outros jogadores chegassem aos times da National Hockey League, consequentemente alguns começaram a tirar proveito tático disso. O Boston Bruins dos anos 1970 ficou conhecido como Big Bad Bruins, vários jogadores de seu elenco campeão em 1970 e 72 eram altos, fortes e maldosos e isso rendeu esse apelido bem óbvio. O Philadelphia Flyers que conquistou a Stanley Cup em 1974 e 75 é conhecido como os Broad Street Bullies, os jogadores sabiam fazer gols e bater também para intimidar adversários. Mas, outro time tem também participação direta nessa escalada de jogo físico e violento.

Flyers e Bruins popularizaram os enforcers
Jogadores de Flyers e Bruins brigando durante uma partida em 1974 (Foto: AP Photo/File)

Quando o St. Louis Blues chegou a NHL em 1967 a tática adotada para que a equipe tentasse o sucesso rápido foi simples e eficiente: um bom goleiro e intimidação física. Naquele período a NHL tinha a divisão leste, onde jogavam o grupo dos Original Six, e a divisão oeste onde as seis franquias de expansão jogavam, incluindo o próprio Blues. St. Louis dominaria a divisão oeste nos playoffs em 1967 usando da força física para passar pelos Flyers, que eram a sensação entre as expansões, e nos anos seguintes. Esse domínio físico levou Philadelphia a responder na mesma moeda, assim fazendo os Broad Street Bullies nascerem.

O sucesso de Bruins e Flyers foi copiado por outros times e o jogo da NHL ficou mais violento à medida em que as expansões continuavam a acontecer. As dinastias de New York Islanders e Edmonton Oilers dominaram os anos 1980 nos títulos e com grandes jogadores de muito talento e categoria, mas também vários enforcers prontos para brigar. Nos Oilers, Wayne Gretzky era escoltado por um batalhão de brutamontes que não precisavam jogar muito, e até mesmo os craques Mark Messier e Glenn Anderson eram acostumados a trocar alguns socos com adversários para tirar o Great One da reta.

Mesmo na troca de Gretzky para o Los Angeles Kings em 1988 os Oilers mandaram alguns dos seus guarda-costas para que ele pudesse jogar em paz no time novo também. O Pittsburgh Penguins tinha os seus enforcers também para protegerem Mario Lemieux, os times de maior sucesso nos anos 1990 também tinham vários jogadores acostumados a brigar, ou que provocavam adversários e tiravam jogadores importantes do jogo, fosse pela violência dos hits ou por conseguir provocar até que brigassem e passassem uns minutos sentados no penalty box, ou mesmo revidassem e fossem pegos pela arbitragem indo sozinhos para o banco de punição.

A Reinvenção Soviética do Hóquei

Enquanto isso, do outro lado da cortina de ferro, a União Soviética encantava o mundo com um hóquei coletivo, elegante e respeitoso. A história da seleção Soviética dominando as competições da federação internacional entre os anos 1960 e 80 tem sua origem muito antes, uma história praticamente mística e lendária de como Anatoly Tarasov reinventou o esporte.

O hóquei no gelo começou a ser praticado na URSS na década de 1940, o fato do esporte ter voltado ao programa Olímpico em 1952 trouxe interesse das autoridades desportivas do país. Tarasov nessa época era jogador e treinador de futebol do CSKA Moscou, mas sem grande sucesso, a oportunidade apareceu para ele no hóquei justamente com a introdução do esporte no país. Tarasov não tinha tanto apego pela visão pré-determinada de como alguns achavam, e ainda acham, que o esporte deveria ser, isso o fez desenvolver seu próprio estilo de jogo. O CSKA Moscou de Tarasov jogava coletivamente, com passes e disparos precisos, muitas movimentações em círculos para confundir a marcação, quanto a isso diz-se que a inspiração veio do balé e dos movimentos das colheitadeiras, histórias que adicionam um pouco de mística a sua lenda. Ele também prezava muito pelo jogo que considerava mais justo e correto e menos pela parte violenta do esporte. Anatoly Tarasov reinventou o hóquei no gelo, o CSKA teria sucesso nos campeonatos nacionais da União Soviética e seu estilo de jogo começou a ser adotado pela seleção do país.

Os soviéticos chocariam o mundo no mundial de 1954 ao derrotarem a seleção do Canadá e ficar com o título, dois anos depois voltariam a fazer história ao conquistar o ouro nas Olimpíadas de Cortina D’Ampezzo, na Itália. Oito anos depois, em 1964, a seleção do União Soviética começaria sua sequência de ouros olímpicos com quatro consecutivos, justamente no mesmo período em que os enforcers começam a aparecer em maior volume na NHL.

A seleção da URSS medalhista de ouro em 1956 (Foto: IOC)

O jogo da seleção soviética encantava pela vistosidade e mostrar que o hóquei não precisa ser violento para ser um esporte atraente e agradável, competitivo e emocionante. Era completamente o oposto do que o hóquei no gelo se tornava na América do Norte, especialmente na National Hockey League. Curiosamente, o mundo não tentou copiar a União Soviética, ao menos não naquela época, mas o tempo mostraria que Anatoly Tarasov foi um visionário muito a frente de sua era.

A Antítese da Guerra Fria

Na década de 70 do século XX, a guerra fria estava em uma fase menos intensa onde a relação entre o bloco socialista e o capitalista passaram por cenários que tiraram o clima militar um pouco de cena. No entanto, em outros aspectos como nos esportes, a rivalidade continuava acirrada.

Foi justamente nesse período em que Canadá e União Soviética acabaram disputando o que ficou conhecido como Summit Series, ou também Super Series, uma série de jogos amistosos que levariam a Canada Cup e o que hoje se conhece como World Cup of Hockey. A primeira versão foi disputada em 1972, o Canadá contou com o que era sua seleção ideal na época com jogadores da NHL. Os quatro primeiros jogos foram em solo canadense, cada seleção venceu dois deles, os outros quatro foram na União Soviética e os Canadenses acabaram vencendo três deles.

Canadenses e Soviéticos se enfrentaram em 1972 (Foto: Toronto Star)

Dois anos depois, os Soviéticos se vingariam vencendo quatro dos oito jogos, os canadenses venceriam um deles apenas, as outras três partidas ficaram empatadas. A seleção canadense nessa edição foi composta com jogadores da World Hockey Association, o que colocava uma dúvida sobre o poder soviético. Em 1976 os times da NHL desafiaram o CSKA Moscou para uma série de amistosos, além do time do CSKA o Krylya Sovetov Moscou também foi jogar contra alguns times da NHL reforçado por jogadores de outros times. Essa série de jogos ficou conhecida como Super Series ’76.

O CSKA enfrentou os quatro melhores times da NHL naquela época: venceu o New York Rangers, Boston Bruins, Montreal Canadiens e perdeu para o Philadelphia Flyers num jogo que ficou conhecido pelo infame incidente que fez os jogadores do time de Moscou se levantarem e saírem. O lance foi um check de Ed Van Impe em Valeri Kharlamov, o grande astro do hóquei soviético, que ficou caído no chão por minutos enquanto o técnico do CSKA protestava alegando que houve uma cotovelada. Após a arbitragem não marcar nada, o CSKA Moscou deixou o gelo e existem histórias de que a NHL não pagaria o valor combinado e por isso o time soviético teria voltado ao gelo. De qualquer modo, os Flyers venceram a partida, talvez justamente graças aos enforcers e de uma maneira negativa, e foram o único dos times que conseguiu derrotar o CSKA.

Na outra série de amistosos, o Krylya Sovetov Moscou acabou derrotando Pittsburgh Penguins, Chicago Blackhawks e New York Islanders, mas perdeu para o Buffalo Sabres. O mais notável nessas duas séries de jogos foi que os times soviéticos sabiam também usar o jogo físico, mas sua preocupação principal era jogar e não intimidar o adversário. Diferente dos times da NHL, que tentavam a todo custo primeiro tirar a concentração adversária, talvez até machucar como pode ter sido a estratégia de Van Impe contra Kharlamov. A Super Series ’76 mostrou que não poderia haver  uma dicotomia maior na maneira de se jogar hóquei como entre o que era praticado na União Soviética e o que era jogado na NHL.

Não que os soviéticos fossem inocentes, eles também tinham seus brigões e jogadores capazes de intimidar fisicamente os adversários. Entretanto, esses jogadores também eram capazes de entrar no sistema de jogo básico da seleção, e dos times que jogavam baseados na filosofia do Tarasov, e não fazer feio, isso os diferenciava muito dos enforcers clássicos. E esses jogadores apareceram em alguns jogos nesse período para devolver na mesma moeda o tratamento que times da NHL e seleções de Canadá e Estados Unidos. Só que eles eram mais importantes e eficientes nos elencos dos times e seleções da URSS do que os enforcers eram nos da NHL justamente por causar impacto no que é o mais importante em um jogo de hóquei no gelo: o placar.

A seleção e os clubes da União Soviética se testaram contra enforcers nos jogos contra as forças norte-americanas
Mundos colidiram nos jogos entre soviéticos e norte-americanos (Foto: HHOF)

Era a antítese da própria Guerra Fria sendo representada no gelo, estilos tão diferentes e conflitantes de se abordar a mesma questão e querendo se provar o superior. Soviéticos enfrentaram times da NHL e WHA, incluindo seus All Stars mais de uma vez e teriam grandes vitórias contra times recheados de estrelas mostrando que seu estilo de jogo era tão bom quanto o adotado na América do Norte. O orgulho canadense de ter inventado o esporte, ou pelo menos organizado como nós conhecemos, queria provar, acompanhado dos americanos, que seu estilo representava o verdadeiro hóquei no gelo.

Essa antítese passa por algo muito importante que é quando se cria algo, e esse algo é difundido para o mundo, perde-se o controle do que sua criação vai virar. É como uma criança que passa pela adolescência e chega a vida adulta completamente diferente do que os pais esperavam ou queriam, isso tem muito mais ligação com expectativas e tentativa de controle do que com a criança em si. Nesse caso, o hóquei tomou uma abordagem completamente diferente a partir de Tarasov e se apresentou como uma maneira diferente, muito mais graciosa se permitem o comentário pessoal, do que muitos esperavam e gostariam que fosse, mas nunca coube a eles e nunca caberá definir qual a cara o esporte pode ou não ter.

No final das contas, a União Soviética caiu, seu estilo de jogo no hóquei ficou sumido, isso parecia ser uma vitória completa do modo norte-americano e dos enforcers. Porém, o tempo trouxe surpresas agradáveis.

Presente, Futuro e o Jogo Coletivo Reinterpretado

O hóquei mudou muito desde a Guerra Fria, são longos trinta anos desde então, o que para os esportes parece uma eternidade. Nesse período várias evoluções esportivas aconteceram em geral, da preparação física à medicina do esporte, uma delas tem sido importantíssima em esportes coletivos e é a análise mais profunda e complexa de dados que os jogos geram. No hóquei no gelo essa análise é bem mais recente do que em outros esportes, no entanto vamos vendo os impactos se tornando cada vez mais claros, começando na própria formação dos jogadores e montagem de elencos.

Quando se combina a análise com a observação por olheiros treinados, a eficiência começa a ser cada vez maior na formação. Programas de formação como da Alemanha e Finlândia são ótimos exemplos fora do eixo Rússia (ex-União Soviética) e América do Norte (Estados Unidos e Canadá), atletas cada vez mais completos vão surgindo e se colocando em destaque para o mundo. O jogo de passes e transições com o disco dominado para a zona ofensiva, em detrimento da tática de jogar no fundo e tentar vencer o defensor na velocidade e força, o dump and chase, tem se tornado cada vez mais presente nas principais potências do esporte. Já na formação é possível ver que a análise aprofundada de dados é usada para corrigir falhas técnicas e ensinar a pensar o jogo de outra maneira. E cada vez menos se vê os enforcers nos gelos de ligas como a NHL, jogadores que sabem apenas brigar e dar hits saíram de moda na mais importante liga do mundo.

Em algum lugar Anatoly Tarasov deve estar sorrindo, no final das contas seu modo de ver o hóquei e interpretar o que o esporte poderia ser está se tornando mais popular através de vários sucessores diretos e indiretos de seu trabalho. A antítese da Guerra Fria parecia ter pesado para o lado que defendia o jogo violento, o tempo, porém, deu razão a quem pensava em priorizar o ato de tentar fazer o gol e tentar um domínio esportivo sobre o adversário.

Anatoly Tarasov sempre priorizou o jogo limpo e não a forma dos enforcers
Anatoly Tarasov carregado por jogadores da seleção soviética em 1971 (Foto: Tass)

O hóquei no gelo é e provavelmente será sempre um esporte violento, como outros, isso está na sua natureza e nos seus fundamentos. Os anos 1970 e 1980 foram de muita violência na NHL, os jogadores que estavam lá teoricamente para defender as estrelas sacrificaram seu corpo e mente para que as estrelas brilhassem, entretanto no final das contas os enforcers apenas estavam perpetuando uma cultura sem grande justificativa, as brigas nunca coibiram o jogo sujo e perigoso. Por isso, tantos enforcers começaram a falar atualmente contra essa tal cultura do hóquei e o tal do código, o esporte não precisa e nunca precisou levar tudo ao extremo.

Algumas regras mudaram para minimizar as brigas, como a penalidade por instigar, e também os hits na cabeça. Ainda assim, a NHL, especialmente, continua dando espaço para jogadores que jogam sujo por conta de suas tradições, como se não pudesse mudar e proteger mais quem está preocupado em jogar e também quem está lá para brigar. O hóquei poderia, e deveria, ser muito mais sobre o jogo justo, ainda que duro e um pouco violento, do que se apegar a violência desnecessária sob a bandeira de que é assim porque sempre foi e apenas assim se evita mais violência, e nunca pensar em mudança e evolução. Caso um dia isso aconteça, em algum lugar Anatoly Tarasov sorrirá muito mais ainda sabendo que sempre teve razão quanto a sua visão do jogo.

Os enforcers foram e ainda são uma arma, que começou a deixar de ser eficaz no esporte. E como toda arma que fica obsoleta, eles foram e estão sendo descartados e substituídos por algo melhor. Não vão deixar de existir jogadores que sabem brigar e usam de hits e outros recursos para tentar intimidar os adversários, apenas eles precisam cada vez mais saber primeiro cumprir suas funções ofensivas e defensivas. Esse é o hóquei que vislumbramos hoje, e que alguns ainda continuam a tentar resistir quase inutilmente mesmo que ainda façam barulho.

Autor

  • Escrevo sobre o esporte desde 2010, mas sou fanático há muito mais tempo. Entusiasta principalmente da NHL, grandes ligas da Europa e hóquei de seleções. Torcedor de New York Rangers, Krefeld Pinguine, Tappara, EV Zug e apreciador de outros tantos times e seleções. Sou conhecido como Fanático por Hóquei no Twitter.