O Carolina Hurricanes tem uma relação especial com goleiros. Nos playoffs de 2002, quando chegaram às finais pela primeira vez, contaram com Arturs Irbe, que garantiu seis vitórias na prorrogação. Em 2006, quando venceram seu primeiro e único título, o MVP foi o goleiro Cam Ward. E as histórias de Jorge Alves e David Ayres estão entre as mais legais dos últimos anos de NHL. Quem diria que, em uma noite inglória, Jack LaFontaine viveria o oposto disso tudo.
Aos 24 anos de idade, Jack LaFontaine vem de ligas juvenis de nível menor, como a North American Hockey League e a British Columbia Hockey League. Natural de Mississauga, grande celeiro de talentos, o rapaz se destacou com bons números no hóquei universitário, atuando por duas equipes tradicionais: os Wolverines, da Universidade de Michigan, e os Golden Gophers, da Universidade de Minnesota. Carolina o selecionou na 75ª escolha geral no draft de 2016.
O curioso é que LaFontaine é chamado durante a sua última temporada universitária, quando Minnesota vem bem e está na corrida pelos playoffs da NCAA, que acontecerão no final de março. Goleiro titular e capitão do time (sim, a liga universitária permite), ele é peça importante na campanha do time, líder na Conferência Big 10. E é convocado logo agora?
A exemplo de David Ayres, Jack LaFontaine é um “goleiro emergencial.”
Os contos de fadas de Alves e Ayres
Jack Alves e David Ayres entraram para a história de Carolina de maneira parecida mas, paradoxalmente, em situações completamente diferentes. Suas histórias são bem conhecidas no mundo do hóquei.
Americano de ascendência portuguesa, Alves foi goleiro durante a juventude. Fluente na língua-mãe dos colonizadores do Brasil, ele trabalhava como roupeiro do Carolina Hurricanes desde a temporada 2003-04. Nesse período, disputou alguns poucos jogos pelas equipes filiadas dos Canes na ECHL, sempre em contrato emergencial. E foi assim que assinou com os Hurricanes, em 31 de dezembro de 2016.
Eddie Lack, goleiro reserva, estava machucado, e não se pode começar o jogo com um atleta da posição apenas. Não daria tempo de chamar alguém da liga menor e, assim, a franquia assinou um contrato de experiência com Alves.
Naquela noite, os Canes enfrentaram o Tampa Bay Lightning na Flórida e, mesmo uniformizado para o jogo, Alves cumpriu com seus deveres de roupeiro. Nos momentos finais da partida, antes do último face-off, o técnico Bill Peters prestou uma belíssima homenagem ao guerreiro luso e o pôs no jogo, no lugar de Cam Ward. A carreira de Alves na NHL durou exatamente 7,6 segundos e ele não levou chute a gol. Tornou-se, automaticamente, o goleiro com estreia mais curta e com carreira mais curta na liga. Herói!
A história de Ayres consegue ser ainda melhor, a ponto de ter sido noticiada até mesmo em jornais brasileiros. Ele era um goleiro semi-profissional que fazia bicos na NHL, geralmente trabalhando na manutenção das arenas. Por sua experiência de atleta, ele já havia ocupado o banco como “reserva emergencial” para duas franquias, Toronto Maple Leafs e Carolina Hurricanes. Mas nada disso foi na NHL, e sim na American Hockey League, pelos filiados de Toronto, o Toronto Marlies, e de Carolina, o Charlotte Checkers. Mas nunca chegou a entrar no em jogo.
Mas veio a noite de 22 de fevereiro de 2020 e, antes que a Covid-19 assolasse o mundo, o Carolina Hurricanes tinha seus problemas jogando em Toronto. Ambos os seus goleiros, James Reimer e Petr Mrazek se machucaram. Precisavam de alguém que tivesse alguma experiência na posição para entrar e o jogo continuar. Encontraram Ayres, que estava por lá para cumprir com suas funções braçais.
Rapidamente, os Hurricanes prepararam seu contrato de experiência e Ayres entrou no jogo com 42 anos de idade, camisa 90 de Carolina e máscara e pads com motivos do Toronto Marlies, ou seja, muito mais afins com os Maple Leafs.
Quando Ayres entrou, Carolina vencia por 3 a 1. Logo fez 4 a 1. Mas o reserva emergencial tomou dois gols em dois chutes e Toronto encostou no placar. O que poderia se tornar um pesadelo acabou se confirmando sonho. Com oito defesas, Ayres segurou o resultado, os Hurricanes marcaram mais duas vezes e venceram por 6 a 3.
Estatisticamente, a vitória é creditada a Ayres, que recebeu US$500 pelos serviços prestados e entrou para a história como o goleiro mais velho a vencer em sua estreia na NHL. E olha só, ironicamente, quem estava do outro lado era Frederik Andersen.
No último mês de outubro, o Carolina Hurricanes confirmou que o produtor James Corden está preparando um filme baseado na história de Ayres. O longa será distribuído pela Disney.
A missão inglória de Jack LaFontaine
Os Hurricanes foram obrigados a assinar com Jack LaFontaine porque não tinham goleiros disponíveis para cobrir o banco e não quiseram subir ninguém da AHL ou da ECHL. Como a performance dele na NCAA vem agradando, a franquia decidiu promovê-lo em vez de optar por outro de seus goleiros sem contrato, mas com direitos retidos.
LaFontaine, então, foi para o banco de reservas na noite de 13 de janeiro de 2022, contra o Columbus Blue Jackets. Mas não deveria jogar. No gelo, estava um dos destaques da temporada, justamente ele, Frederik Andersen, recém-indicado para o All-Star Game.
Só que a defesa de Carolina estava mal, permitindo contra-ataques e breakaways a torto e a direito e Andersen acusou o golpe. Tomou quatro gols, os dois últimos em um intervalo de 33 segundos, em chutes defensáveis. Com seu goleiro fragilizado, e 4 a 0 no placar, o técnico Rod Brind’Amour optou por substituí-lo.
LaFontaine entrou no rinque e, com apenas 30 segundos, tomou seu primeiro chute. Em um breakaway, contra Cole Sillinger. Resultado? Gol. O quinto de Columbus.
O reserva emergencial ainda levaria outro gol, desta vez de Jack Roslovic. Como? Em um breakaway. A defesa de Carolina estava, viu…
No fim das contas, Columbus venceu por 6 a 0 e LaFontaine fechou sua estreia na NHL com 14:57 minutos jogados, três chutes a gol, dois gols sofridos e apenas uma defesa. Isso é que é uma noite para se recordar!
Não dá para culpar LaFontaine. Ele entrou com 4 a 0 na conta, em um jogo onde o momentum era de Columbus desde o começo (o próprio técnico Brad Larsen afirmou isso em coletiva) e a zaga vivia uma de suas piores noites. O rapaz não foi causa, mas consequência.
E como não pode mais voltar para Minnesota, pelas regras da NCAA, LaFontaine segue com a organização até o fim da temporada. Que tenha a ajuda do time em uma partida mais digna para melhorar seus recordes profissionais.
Para finalizar, uma curiosidade inútil, esta em forma de apelo: evite usar “no olho do furacão” como metáfora para momento conturbado. No jargão meteorológico popular, o olho do furacão é justamente o contrário, é um instante de calmaria. Furacões são cíclicos, daí seu nome técnico “ciclone tropical.” O olho é justamente aquele ponto que fica no meio do círculo do vendaval, entre o começo e o final de todo o caos climático.
Esta noite, portanto, Jack LaFontaide definitivamente não estava no olho do furacão. Entrando no jogo com 4 a 0 no placar e Columbus livre para marcar gols em breakaways, o estreante estava no próprio coração da tempestade.